Pelos Meus Olhos #1

29 de Abril, 2019 0 Por Planetadosavos

Num mundo ideal todos seriam tratados com respeito e dignidade. Desde a mais inocente criança a um sábio idoso. Sim, sábio. É isso que todos os idosos são, mesmo aqueles que não tiveram a oportunidade de estudar ou que não tiveram uma brilhante carreira profissional.

É sobre estes sábios que vos falo hoje. Fui diretora técnica de uma resposta social que atualmente se chama “Estrutura Residencial para Idosos”, geralmente denominado lar de idosos.

A minha educação e valores ditavam para que desde o meu primeiro dia de trabalho, todos com quem trabalhasse (idosos e colaborador(a)s) seriam tratados com respeito, dignidade, amizade, dedicação e acima de tudo humildade.

Neste meu testemunho abordarei três temas que considero fundamentais:

1) o contacto com os idosos;

2) a relação com o(a)s colaborador(a)s;

3) a morte de um(a) utente;

O primeiro tema é sensível: o contacto com os idosos. Muitos pensam que este contacto se resume ao dia-a-dia passado com os idosos, a satisfação das suas necessidades básicas (higiene, alimentação,…) e a planificação das suas atividades. Estas são, sem dúvida, tarefas muito importantes, mas o contacto com o idoso vai muito além disso. O primeiro contacto com os idosos é feito com os seus familiares e incluí-los na nova família do idoso. Um lar de idosos não é nada mais nada menos do que uma nova família. Serão novas rotinas, espaços, pessoas, partilhas e acima de tudo sentimentos. E serão estes sentimentos que ajudarão o idoso a sentir-se integrado e feliz na sua nova família. Mas para isso os seus familiares devem e têm de colaborar muito. É fundamental que na fase inicial de integração os seus familiares os visitem tantas vezes quanto possível, para que surja o sentimento de união e não de abandono. O idoso deve sentir “as suas famílias” unidas e não sentir que foi abandonado por uma, para fazer parte de outra. E é aqui que se inicia a relação de confiança que deve sempre existir entre as duas famílias. Algo que também é muito fácil fazer é julgar os filho(a)s que colocam o pai ou a mãe num lar de idosos. Quem nunca? No entanto, devemos sempre pôr-nos na posição desse(a) filho(a), entender as suas razões e acima de tudo as suas limitações e lembrarmo-nos sempre que a decisão de por um pai ou uma mãe num lar de idosos NUNCA é fácil de tomar.

Relativamente à relação com o(a)s colaborador(a)s, considero que a base fundamental é “o exemplo”. Como iria eu entender um(a) colaborador(a) nas suas dificuldades em desempenhar funções, sem as ter desempenhado antes? Para isso, desde início coloquei mãos à obra e trabalhei em todos os serviços que me estavam diretamente ligados. Fui ajudante de ação direta, ajudante de serviços gerais e lavadeira. Estas experiências ajudaram-me a compreender todas as lacunas que estes serviços apresentavam. Tentei sempre adaptar os recursos humanos disponíveis ao melhor que conseguia, numa perspetiva de melhoria contínua. De mencionar ainda a importância das reuniões de equipa mensais (por vezes quinzenais e até semanais!!), que devem ser realizadas, pois contribuem para o amadurecer e fortalecer da relação em equipa. Não posso deixar de referir que o orgulho, respeito e admiração que sinto pela equipa que comigo trabalhava. Mulheres fortes, trabalhadoras, dignas, determinadas e justas.

Para qualquer ser humano é difícil lidar com a morte de um familiar. Num lar de idosos é igualmente difícil.

Tive a felicidade de poder conhecer uma idosa a quem aqui vou chamar de Dona M. A Dona M. entrou no dia da abertura do lar de idosos onde exerci funções. Passados 5 dias fui com ela para o hospital. A Dona M. estava muito mal… Pensei que ela ia falecer ao meu lado naquela cama de hospital, enquanto aguardava no corredor das urgências. Porém, algo quis que aquela senhora fizesse parte da minha vida por mais uns anos. Dei-lhe muitas vezes banho, vesti-a, dei-lhe de comer, dei-lhe e recebi muitos beijinhos, abraços e até ameaças da sua bengala!! E aquela senhora passou a ser minha avó, pois identificava-me muito com ela… No dia em que ela faleceu no lar, despedi-me dela e ajudei a carregar o seu corpo. Nunca antes tinha conseguido fazer nada semelhante. E ainda nesse dia anunciei uma decisão que mais tarde viria a concretizar-se. Não sei explicar, nada acontece por acaso, mas sinto e sei que ela me acompanha sempre.

O processo seguinte não é fácil… Ver o lugar vazio, retirar e entregar aos familiares todos os seus pertences do quarto, despedirmo-nos daqueles familiares que também já são nossos.

A segunda situação que partilho com vocês é a de um senhor a quem vou chamar Sr. R. O idoso mais bonito e meigo que alguma vez conheci. Dizia-lhe muitas vezes que se ele fosse novo não me escapava, que me casava com ele e com aqueles olhos azuis!! Um senhor no verdadeiro sentido da palavra: respeitador, meigo, humilde, inteligente. A demência de Alzheimer teimava em roubar-lhe a identidade, mas ele foi forte e corajoso mas não imortal. Faleceu quando eu já não estava na Instituição, mas não deixei de ir ao seu velório despedir-me.

O tempo atenua a dor e a vida encarrega-se de colocar as coisas no seu devido lugar. Mencionei estas duas pessoas, porém todos os que foram “minha família” viverão sempre nas minhas memórias e no meu coração.

Não sei se voltarei a trabalhar num lar…Por agora vivo outro desafio audaz. No entanto terei sempre a mesma postura e uma certeza: “Os idosos/utentes serão sempre tratados como família e não como meros objetos”.

Andreia Lima (Gerontóloga Social)