Conversas de Café com… Sara Costa

9 de Julho, 2019 0 Por Planetadosavos

O relógio marcava 18h45 quando o Planeta dos Avós se preparava para entrevistar Sara Costa. Foi então num simples banco de jardim, sobre a vista deslumbrante do Rio Lima que desce até à cidade de Viana do Castelo que a conversa começou. À magnífica vista criada pelo rio, une-se também a mítica Ponte Eiffel como pano de fundo e que, trouxe sem dúvida uma paisagem sem igual para cerca de 30 minutos de ideias e partilhas incríveis que o Planeta teve a honra de receber e que guardará para sempre com muito carinho e amizade.

Planeta dos Avós: Olá Sara. Antes de mais obrigado pelo facto de nos ter concedido a realização desta entrevista. Ao longo destes últimos tempos, encontramo-nos algumas vezes em contexto profissional e reparamos que o seu trabalho traz às pessoas uma alegria imensa, com muita felicidade e harmonia. E em especial, os idosos sentem-se mais vivos e valorizados! Neste sentido, o nosso mais recente blogue “Planeta dos Avós” dedica-se sobretudo às pessoas mais idosas, e tem como objetivo melhorar a sua qualidade de vida.

Por tais motivos, gostávamos de lhe colocar algumas questões. Será que podemos começar?

Sara Costa: Força

PA: A primeira questão é principalmente para quem ainda não a conhece. Nós já tivemos o privilégio de ler a sua biografia, mas gostaríamos que nos falasse um pouco sobre si – De onde é, qual é o seu curso e a sua profissão?

SC: Ok, bom dia, antes de mais. (Risos) Eu sou natural de Vila Nova de Anha (olhe, ali vai o meu professor de Clarinete! Aprendi muitas coisas com ele!). Como estava a dizer, sou natural de Vila Nova de Anha, de Viana e comecei a estudar música, já a minha mãe dizia que me embalava a mim própria. Tudo começou quando era ainda muito bebé. Depois aos 10 anos fui estudar para a escola do Centro Social e Paroquial que havia na altura com o professor Francisco Lima. Estudei formação musical, depois de entre dois instrumentos, o clarinete e o saxofone, acabei por enveredar pelo clarinete. Entretanto, o professor achou que eu tinha algum potencial e falou me na escola profissional de musica e aos 11 ingressei no sétimo ano. Fiz as provas, passei e fiquei em clarinete. Foi ai que iniciei o meu percurso profissional a nível musical. No nono ano emigrei. Estive em Andorra. Um ano depois por alguns motivos foi necessário regressar à escola profissional e continuei a minha formação até ao 12º ano. Mais tarde fui para Lisboa. Licenciei me em ciências musicais e agora estou a terminar o mestrado em etnomusicologia, isto numa vertente mais especifica. Genericamente, foi a minha parte académica. Fiz muitas formações, sou muito interessada em várias coisas, não apenas musicais. Coisas que acredito trazer elementos bons para o meu trabalho, na qual é a meditação, ou a comunicação não-verbal ou áreas ligadas à psicologia. Gosto de estar informada e isso faz com que o trabalho seja mais rico. A nível profissional comecei a trabalhar desde o primeiro ano de faculdade, em AECs em Lisboa. Depois fiz um curso na Música nos Hospitais, na Associação Portuguesa de Musica nos Hospitais e Instituições de Solidariedade em Lisboa. Fiquei a trabalhar com eles alguns anos. Trabalhei tanto em hospitais como em Lares e foi ai o meu primeiro contacto com a música na terceira idade. Era um trabalho diferente, em pares, com metodologia específica. Em lares com 200 pessoas onde fazíamos o nosso percurso musical. Entretanto arranjei a minha própria forma de estar e de apresentar a música às pessoas. Fazia com que elas se expressassem através da musica. Fui professora de formação musical, trabalhei na Casa Pia em Lisboa, com crianças com problemas, desde aprendizagem, a problemas sociais, económicos… em situações muito complicadas…

PA: Portanto tem uma vida profissional muito repleta de emoções…

SC: Sim. Passei por sítios muito complicados. Como referi, trabalhei na Casa Pia e foi pouco depois daquela situação menos boa, algo complicado. Depois nos hospitais, trabalhei na parte de pediatria e neonatologia, com as mães acabadas de dar a luz e trabalhei no IPO. São todos lugares muito frágeis… vi coisas muito difíceis e muitas vezes achei que não ia conseguir lidar com… ainda trabalhei bastantes anos. Vi crianças abandonadas, idosos abandonados… mas uma criança abandonada no hospital é um local… ou seja, o lar ainda está preparado para receber aquela pessoa, agora, o hospital está preparado para receber uma pessoa durante x tempo. Havia crianças no sistema há dois anos! Depois, estive em projetos ligados à fundação Calouste Gulbenkian, numa parceria com a UNL, no laboratório de investigação ligado à música e comunicação na infância, na qual sou colaboradora. Trabalhei num projeto de uma creche carenciada socialmente, onde suprir as necessidades mais básicas era mais importante do que tudo o resto que existia à volta. A prioridade era sobreviver! E trabalhei com estas pessoas, com as famílias, fizemos uma apresentação na Gulbenkian. Foi uma integração muito bonita nesta parte mais cultural…

Mas, se calhar estou a falar demais… o meu percurso é realmente grande (risos) porque fiz muitas coisas e, estou a falar mais rápido que é para tentar dizer algumas… (risos)

PA: não, não…

SC: Mas a realidade é que felizmente, isso me trouxe muitas coisas boas. Trabalhei em muitos locais, com muitas pessoas de várias idades e de várias áreas. Mesmo na facultade, colaborei com o Lampsi mas também já colaborei com a CESEM que é o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, da UNL… portanto, com temas completamente diferentes… a minha tese de Mestrado é sobre bandas de garagem!

PA: interessante!

SC: E a minha ligação à CESEM foi com música contemporânea… portanto, nada tem a ver com nada, mas acredito, e a minha forma de ver o mundo é que tudo tem a ver com tudo…

PA: Claro… está tudo interligado…

SC: Está tudo interligado e isso pode alimentar. Acho que crescemos muito a fazer várias coisas e conhecer várias pessoas e várias formas de trabalhar! Às vezes ficamos presos só à nossa disciplina, só àquela parte muito especifica. E crescemos muito em abrir um pouco os olhos. Enriquece muito a nossa forma de estar e de ver o mundo…

PA: Sim e depois a parte prática também é muito importante…

SC: Sim. Mais tarde fui raptada no mestrado…. estava em etnomusicologia e graças à professora Helena Rodrigues – de quem eu gosto muito, é muito minha amiga – que é um grande nome a nível da psicopedagogia musical, principalmente na área da infância/primeira infância em Portugal, comecei a fazer espetáculos para bebés, através da companhia de musica teatral a nível nacional e internacional… descobri que eu e os bebés também temos uma boa conexão… devo ser eu e os extremos! (Risos).

PA: É a Sara e todo o mundo… (risos).

SC: Talvez! Não sei! Com os bebés é diferente porque não julgam, não falam, eles sentem… é muito genuíno. Não há aquele olhar para a cor do cabelo, ou para o piercing. Não há esse preconceito que as pessoas têm. Porque as pessoas fazem os seus pré-conceitos… e acham que aquela pessoa faz isto… é assim…

PA: E muitas vezes não corresponde à realidade…

SC: Muitas vezes não corresponde. É preciso conhecer primeiro e falar depois, mas isso é algo que deve ser em tudo na vida! Nós julgamos muito.

PA: E a parte da meditação também ajuda bastante, não é?

SC: Ajuda bastante e ajuda-me a mim e aos outros. Tanto nas ferramentas que me dá para trabalhar com os outros, tanto nas ferramentas que eu própria tenho, onde estou bem e se estiver bem, também os outros o vão sentir… e a meditação ajuda também na parte musical.

PA: Nós percebemos isso pelas suas aulas!… (risos)

SC: (Risos)

PA: E por falar em aulas, quem a vê dar uma aula, percebe que gosta imenso do que faz. O que é que a motiva? Quais as principais dificuldades?

SC: Eu devia ter estudado isso! Adoro o que faço. Isso sem duvida, podem achar que faco bem, ou que faço mal, que o método é bom ou é mal, mas adoro o que faco e com o passar dos anos noto que é um ponto de entrada para as pessoas, o sentirem. Estou ali genuinamente porque gosto e gosto desta comunicação e das coisas que nascem desta interação a nível musical, mas não só porque através da música também passam muitas outras coisas! … E já não sei o que era mais… (risos)

PA: O que a motiva, e quais as principais dificuldades que encontra…

SC: O que me motiva – nunca aprofundei muito isso, não sei – acho que sinto que comecei a olhar mais para esta população mais carenciada seja a que nível for precisamente porque era um lugar julgado e muito pouco apreciado, onde havia muito pouca intervenção. Hoje em dia, já se fala bastante, mas quando iniciei não tanto… como ser humano, como cidadã, não posso ficar simplesmente a ver as coisas acontecer! Se tenho uma ferramenta que pode trazer algo, por mínimo que seja – sei que não estou a dar comida, nem dinheiro – mas estou a dar um bocadinho de alegria e isso motiva para uma busca maior de… para que aquele dia já tenha valido a pena!

PA: E isso vê-se!…

SC: Que bom! Fico feliz só com isso! É isso que me motiva… ver o retorno que tem… ver as réplicas, tudo o que acontece do outro lado e, isto é valido para qualquer população.

PA: Sabemos que atualmente está ligada ao programa “Sénior+Ativo” da Câmara Municipal de Viana do Castelo, num projeto intitulado “Mexe a Voz”. Fale-nos por favor um pouco acerca desse projeto. Isto é, em que consiste, o que é que é feito, quais os seus benefícios para as pessoas que acompanham…

SC: Este projeto nasceu em Janeiro. Decorreu de janeiro a junho e acabou por ser uma proposta feita por mim, baseada em projetos realizados por mim através da academia de musica de viana do castelo, onde felizmente conseguimos uma parceria com a camara municipal e dai nasceram três projetos – o canta me uma história, o mexe a voz e, o mexe a voz em – e neste ultimo é onde nos deslocamos ao sítios. O canta-me uma história é mais teórico, onde contamos as histórias de cada um a nível musical e as trabalhamos nesse sentido. É o mexe a voz, na perspetiva em que o conheceu. Mexe a voz, mexe o corpo, porque acredito que a música está em nós e para que ela flua, o corpo tem que estar presente. O que conseguimos ver desde crianças, e até em nos próprios. A música fisicamente tem uma interação automática em nós. A música e o movimento estão ligados e daí o projeto. As pessoas em idades mais avançada cada vez estão mais paradas e mais passivas a todos os níveis físico, mental, cognitivo, social, tudo está mais parado e não sei o porquê disso. Vamos perdendo capacidades com a idade, as doenças vão aparecendo, mas vejo pessoas mesmo com doenças onde este tipo de intervenção, que mexe com a parte física e cognitiva, tem tido resultados positivos e bons. Já tive a experiencia que me tocou mais, que foi a minha avó. Estava acamada. Totalmente dependente. Apenas existia e não comunicava de forma nenhuma. Uma altura a minha mãe cantou determinada música e aquilo fez um clique qualquer e ela começou a cantar (claro que não a cantar como nós) mas a tentar… foi algo incrível. E isso entra para as razões da motivação também!

PA: Sim, claro que sim. É um fator motivante e acaba por ser também um dos grandes desafios que vai encontrando ao longo da sua carreira… porque infelizmente há pessoas que já não têm aquela capacidade e a Sara precisa de se adaptar a essas situações…

SC: Sem dúvida. Tudo é desafiante. E com pessoas mais velhas há outros desafios porque eles têm a sua personalidade muito bem definida e entrar às vezes é difícil. Tem de existir um jogo de cintura. Não posso chegar e simplesmente fazer aquilo que quero… temos de chegar numa perspetiva de interação de: vamos aprender todos juntos, vamos fazer algo para nos divertirmos e perceber o que chega até eles. Ou seja, se estou a fazer uma musica que não está a ir a lado nenhum, não vou ficar nela 50 minutos… mudo. Paro e tento que eles me cantem algo… tem tudo a ver com a empatia… Com esta perceção do que o outro está a sentir, do que o outro terá ou não a dizer. São pessoas que já tem muitos anos de vida, muitos anos de experiencia e não sou eu que lhes vou ensinar algo, mas ao mesmo tempo sou eu que lhes vou ensinar algo (risos). É algo conjunto. Um dos desafios é o chegar às pessoas.

PA: E como é que as pessoas reagem a isso?

SC: às sessões?

PA: Sim…

SC: Reagem muito bem. Ainda hoje fui fazer as últimas sessões do projeto e estavam a dizer que no inicio estavam apreensivos mas no fim disseram que “ o que mais lhe vale é a voz e a alegria, transmite muita alegria”… ou seja, tem a ver também com o facto de gostar daquilo que faço. A parte boa é o receber que tenho do outro lado, esta atenção. Eu vivi uma situação muito (e você estava lá! Risos) bonita de uma senhora, que no fim da sessão veio me abraçar com tanta força e disse “você tirou-me um peso de cima. Estava com uma depressão enorme e vou daqui melhor”. E ainda me abraçou mais. Aquilo soube-me tao bem. Senti que ela estava a descarregar uma tensão tão grande! Penso que é isto que vale mais do que qualquer coisa. Eles partilham muito o que sentem. E consigo ter esse feedback, porque eles não enganam. Ou gostam, ou não gostam e dizem! Isto faz-me sentir que o trabalho está a chegar as pessoas.

PA: E na sua opinião e ao longo da sua careira na música e não só, como considera que são vistos os idosos atualmente?

SC: Felizmente fala-se muito das coisas más que estão a acontecer o que de alguma forma é bom porque há uma perceção da realidade. E através disso estamos a voltar a ter respeito pelas pessoas, tendo a idade que tiverem. E estejam elas como estiverem, com mais ou menos deficiência, com mais ou menos dor… o que for! e estamos a reaprender a respeitar o outro. Os idosos em particular porque foram uma população, que pela sua fragilidade, principalmente física, mas também mental, tudo era abafado, uma vez que essas pessoas não tinham como comunicar. Hoje, estamos a ganhar esse respeito e com isso, estão a surgir projetos e formas de estar com essas pessoas. É necessário perceber que está ali uma pessoa, que tem necessidades individuais, que teve uma vida, um trabalho, uma experiencia e que tem ainda muitas coisas bonitas para dar – se calhar já não consegue andar, mas consegue cantar, não consegue ler, consegue tricotar – ou consegue contar uma história e dar uma perspetiva histórica às coisas e, no fundo é valorizar o saber das pessoas, valorizar as pessoas por aquilo que são. Todos nós temos algo, todos temos algo para dar… com a sua experiencia…

PA: Que é muito longa…

SC: Sim e que não acaba ali. É valida.

PA: Muitas vezes só estão à espera de alguém que os ouça, que os compreenda, que lhes peça para contar isso mesmo, uma história…estão à espera daquele carinho e às vezes só querem ser ouvidos, querem falar…

SC: Às vezes só isso é um fio para muito mais. O olhar é também muito importante. A questão do afeto, essa interação, o olhar, traz-nos muitas coisas boas para nos ensinar. Há estudos neste sentido, que não é apenas o que fazemos, mas como fazemos. E tudo se sente… a realidade sente-se. Só isso é uma porta aberta, que surge também naturalmente da minha forma de estar. Ainda por cima hoje estamos tanto virados para o telemóvel…

PA: E neste sentido, sabemos que já teve contacto com os hospitais. Como é trabalhar para esse parte da população, que se encontra menos bem de saúde?

SC: É completamente diferente! E ai estamos a trabalhar não só para o doente mas para todas as pessoas que estão lá. Fazíamos intervenção não só a nível do utente, mas na família, nos enfermeiros, no médicos, nos auxiliares… o nosso lema era “Humanizar” porque chegámos ao piloto automático e é ai que nos esquecemos do olhar, do sentir… é urgente este tipo de trabalho e os hospitais e até os lares, as creches precisam deste trabalho. Gosto de aprender e mesmo se for algo que já saiba, se for outra pessoa a dizer, já vem com novo impacto, com outra experiencia. Ouvir aquilo de outra forma é importante. Mas no hospital é mais delicado. Trabalhei sempre com população mais jovem mas vale sempre a pena…

PA: Sara, estamos a chegar ao fim, só mais duas questões… já percebemos que encara ou parece encarar a vida muito positivamente… é assim que acontece?

SC: Eu tento (risos). Não pode ser assim todos os dias mas aprendi o ioga do riso. E começa por um forçar. Com o passar do tempo, vamos estar genuinamente a rir. E a parte cientifica também tem ajudado a perceber que esse aspeto. Também é uma mais-valia para o nosso sistema imunitário. O estar alegre, o sorrir, faz bem às doenças e tento ter essa atitude positiva mesmo quando estou menos bem. Mesmo quando tenho febre, tento ter uma atitude positiva e estar feliz. A realidade é que ajuda! Sim, tento ter uma atitude muito positiva com alegria.

PA: – Consegue definir aquilo que faz em 5 palavras?

SC: Já repararam que eu utilizo muitas! Cinco, não sei…. O meu trabalho em cinco palavras… escuta, amor, respeito…

PA: Nunca ninguém lhe tinha perguntado isto! (risos)

SC: Não! Nem eu própria tinha pensado assim em palavras tao curtas… mas é engraçado porque na meditação também nos fazem pensar em palavras… – podem ajudar! (risos) – estímulo e compreensão. Acho que é isso.

PA: As perguntas terminaram. Queremos agradecer uma vez mais… não sabemos se tem mais alguma coisa para nos contar…

SC: (risos) Nem eu sei… às vezes esqueço-me até dos trabalhos que estou a fazer… mas penso que não…

PA: Obrigado mais uma vez por nos ter concedido a entrevista!

SC: Obrigada eu pela oportunidade!