Conversa de Café… Maestro António Vitorino d’Almeida
Domingo. Dia de Sol. A primavera estava a chegar. Sentada no hall de entrada do hotel, onde o maestro estava hospedado, aguardava pela hora marcada. Iria conversar com o Maestro. Quando desceu do quarto convidou-me logo para um café, e aí eu percebi que iria ser literalmente uma conversa de café…
Planeta dos Avós: Bom dia Maestro, antes demais obrigada pela entrevista. É a sua primeira vez em Viana do Castelo?
Maestro: Não. Já vim cá muitas vezes.
P.A.: O que acha da cidade?
M.: Eu gosto imenso de Viana. Eu até costumo dizer que a minha terra começa a partir de Viana. De Viana para cima, por Caminha, Moledo e por aí fora. Aqui sinto-me em casa.
P.A.: O João Francisco e o Manuel vieram consigo para Viana? [São dois peluches, oferecidos ao Maestro, antes do seu nascimento. Os peluches acompanham o maestro nas suas viagens]
M.: (risos). Desta vez não. Eles viajam mais no verão. Coitadinhos estão a ficar muito velhinhos (risos).
P.A.: Como é que se encantou pelo mundo das artes, do palco e da música?
M.: Foi há tanto tempo. Nunca me conheci diferente. Sinceramente. Acho que os meus pais tiveram alguma influência, mas não que fosse obrigatório. Foi natural, que eu acho que é assim que deve de ser. Eu sempre me diverti muito. Quando era miúdo, tive a sorte de nascer num bairro que na altura era no centro de Lisboa, mas no entanto dava para umas hortas. E eu ia para lá brincar muito com os meus amigos. Era o tempo dos pés descalços, e os meus amigos daquela altura eram uns pés descalços. Mas nós habituamo-nos a ser um pouco capitães de areia.
P.A.: Isso é bom. Agora já não se vê os miúdos a brincar nas ruas.
M.: Pois, agora infelizmente já não. Há uma confusão, que eu não sei se é só por estupidez que se faz ou se tem outros sentidos, até porque como dizia o Camilo Castelo Branco “a estupidez tem intuitos impenetráveis” (risos). Realmente, a cultura é uma coisa importantíssima. Faz parte absoluta e indiscutível da vida das pessoas. O entretenimento também faz parte, mas não são a mesma coisa. Esta música que você está a ouvir [a televisão do café estava sintonizada no canal da MTV] não é arte. Não é. É entretenimento. E está-se a confundir o entretenimento com a arte. Inclusive está-se a gastar dinheiro com o entretenimento com verbas que podiam ser para a arte. E muitas coisas não acontecem no nosso país, porque o dinheiro é encaminhado noutros sentidos. Eu não tenho nada contra o entretenimento. Antes pelo contrário. Também é muito importante a vários níveis, mesmo a nível musical.
“Está-se a confundir o entretenimento com a arte”
António Vitorino d’Almeida
Maestro
P.A.: Até porque o Maestro enquanto artista tem de ter um dom dentro de si, porque aos cinco anos compôs a sua primeira obra e aos sete fez a sua primeira audição.
M.: Sim, mas às vezes os dons perdem-se.
P.A.: Se não forem trabalhados.
M.: Pois, as crianças têm muita tendência para nascerem com um toque especial, mas depois vai-se perdendo. Mas, de facto, sempre vivi a gostar de me divertir, ir para as festas, para os bailes, mas nunca confundi isso com música. Mas isso é com todos os géneros, porque essa história de música erudita não quer dizer nada. Zero. Existe uma música ligeira que é uma música estruturalmente mais simples, mas também aí há aquela que é cultura. As grandes canções da Edith Piaf, os grandes cantores de hoje da Broadway são cantores e canções de grande cultura.
P.A.: Que atraem milhares de pessoas.
M.: A própria cultura atrai milhares de pessoas. É uma coisa que mais público atrai. Há uma coisa que nós cá em Portugal ignoramos, já dizia Salazar “orgulhosamente sós”, principalmente neste tipo de convicções. Em termos matemáticos estamos longe, muito longe. A arte musical que atrai mais gente é a ópera. Em Portugal não existe, mas é só em Portugal. O único excecional é Portugal. Na Áustria é igual à Bélgica, a Bélgica é igual à França, a França igual à Inglaterra, a Inglaterra aos Estados Unidos, depois há a Rússia e o Brasil, só Portugal é que não têm (risos). A ópera é uma coisa que atrai muito. Em Viena há duas óperas a funcionar diariamente, trezentos e sessenta e cinco dias no ano. Nessa ópera trabalham num edifício centenas de pessoas, não são empregados precários, depois contabilizamos o corpo de baile que são para aí oitenta pessoas, o coro mais oitenta pessoas, empregados que limpam as casas de banho, a própria sala, há maquilhadores, cabeleireiros, só depois disso é que vem os cantores e os músicos. São os mais caros. Mais caros do que os cantores, só os maestros. E acima dos maestros só a direção, que é sempre quem acaba por ter mais. Um espetáculo de ópera e um espetáculo dos Rolling Stones, é como um jogo entre o Vianense e o Vilarelho.
P.A.: Uma pessoa quando vai ver algum espetáculo desse género não tem noção de quantas pessoas estão a trabalhar por detrás do pano.
M.: E do dinheiro que se gasta. Mas para teres noção, nessas cidades [como Viena de Áustria], as óperas estão cheias. São duas a três mil pessoas que vão assistir por dia. Não há juventude, nem novos, nem velhos. São pessoas.
P.A.: Viveu em Viena durante vinte e três anos, tendo mesmo sido condecorado por dois Presidentes da República da Áustria. O que significa Viena para si?
M.: É a minha terra. ´
P.A.: E o seu país Portugal?
M.: Sim. Em certo ponto sim. Mas de facto, os grandes anos da minha vida foram vividos em Viena. Ainda há dias tive lá a fazer um concerto, e é a minha terra. Em Lisboa sinto-me um estrangeiro, muito sinceramente, só não ando de tuk tuk. Por isso é que digo que a partir de Viana [do Castelo] é que estou em casa, sou outra pessoa.
P.A.: O Maestro tem três filhas: a Maria, a Inês e a Anne, todas elas estão ligadas de uma certa forma à arte.
M.: Sim, a Inês agora menos porque foi para a política. Mas também aí acaba por estar ligada, é uma obrigação de Estado.
P.A.: Mas foi influência sua ou deixou que elas seguissem o coração?
M.: Eu deixei sempre que elas seguissem o coração, deixei que elas escolhessem os seus próprios caminhos, o que elas queriam e não as obriguei a nada. Agora, claro que a influência está sempre lá.
P.A.: Acaba por ser um bocadinho inevitável.
M.: Sim, é inevitável.
P.A.: Qual é a batuta mais difícil: a da música ou a da vida?
M.: É a da vida. A da vida é muito mais difícil porque há mais instrumentos (risos). A da música reflete, ainda que de forma reduzida, muitas coisas da vida.
P.A.: Os Maestro têm noção que já deixou a sua marca quer em Portugal, quer no mundo.
M.: (apenas sorri)
“[A batuta] da vida é muito mais difícil porque há mais instrumentos”
António Vitorino d’Almeida
Maestro
P.A.: O que ainda lhe falta fazer?
M.: Nós devemos sempre pensar que aquilo que nos falta fazer é o mais importante. Em qualquer idade. Porque senão, se a gente pensar que a partir de agora fiz tudo e agora resta-me só gerir o resto da vida. Isso é uma desgraça. Temos de pensar que o que fizemos está bom, mas agora o que vem aí é muito mais importante.
P.A.: E muito melhor…
M.: É muito melhor, muito mais importante. Eu acho que isto é uma filosofia de vida que se tem de ter em todas as idades da vida. Porque senão o nosso pensamento está lixado. Uma pessoa fica decrépita em pouco tempo.
P.A.: Alguma vez pensou reformar-se?
M.: Não. Há dias por brincadeira disse que me ia reformar, e trabalhei mais nesse dia que nos outros dias todos. Ouça uma coisa, Portugal tem coisas que são muito feias. Em princípio, ninguém quer a reforma. A pessoa quer trabalhar, até porque se chateia estar em casa. Agora uma pessoa quer uma certa garantia, eu tenho uma reforma que não chega a trezentos euros por mês. Portanto, eu não gosto dessa reforma. Sinto-me ofendido. E como eu, há milhares de casos idênticos. Eu acho que uma pessoa, de um modo geral, devia ter direito a uma reforma de preocupações para saber como acabar o mês. Eu tinha de ter direito, as pessoas tinham de ter esse direito. A reforma permite que as pessoas tratem dos jardins, joguem às cartas, mas não é voluntário. É quase como um imposto.
P.A.: Na Europa, há países que as próprias Câmaras ou até mesmo Juntas de Freguesia ajudam financeiramente os idosos. Há, aliás, médicos ao domicílio para evitar congestionamentos nos hospitais.
M.: Exatamente, eu acho que devia ser proibidos ir para os hospitais com uma gripe. Porque vai espalhar a gripe pelo hospital e apanhar bactérias ou outras coisas. A gripo cura-se em casa, se for uma pneumonia é diferente. Mas o hospital deveria ser o último caso, mas aqui [em Portugal] é a primeira hipótese. Espirra e vai logo para o hospital.
P.A.: No seu bilhete de identidade diz que têm 78 anos, e na vida real? Quantos anos têm?
M.: 78 (risos). Tenho 78 anos, não me considero nem mais novo, nem mais velho.
P.A.: Mas sempre com a sua bengala?
M.: Essa anda comigo desde os catorze anos (risos). Primeiro começou com uma questão de estilo, e mesmo agora gosto de pensar que continua comigo para o estilo (risos).
P.A.: Obrigada Maestro.
M.: Obrigado.
“Nós devemos sempre pensar que aquilo que nos falta fazer é o mais importante”
António Vitorino d’Almeida
Maestro